DISCURSO DE FUNDAÇÃO DO CORPO FREUDIANO PESQUISA E TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE
Pronunciamento realizado para uma plateia de psicanalistas no auditório do Tempo Glauber, Rua Sorocaba, 190, Botafogo, Rio de Janeiro, em 31 de agosto de 1994, nas dependências do qual o Corpo Freudiano funcionou durante alguns anos no início de sua existência. Publicado originalmente em Papéis, Boletim do Corpo Freudiano Pesquisa e Transmissão da Psicanálise, nº2, maio de 1995.
“Penso com meus pés”
Lacan na Universidade de Yale
O Corpo Freudiano Pesquisa e Transmissão da Psicanálise está sendo criado num momento muito específico do movimento psicanalítico internacional, em que duas IPAS se defrontam em nome do poder e da quantidade, mas se esquecem da veia principal da qual a psicanálise, assim como qualquer outra ciência, se nutre: a abertura para o novo e a expansão de seus próprios limites teóricos.
Embora certamente haja outros pequenos grupos com ideais semelhantes aos nossos, nosso Corpo nasce com algumas particularidades e objetivos. Em primeiro lugar, a nomeação do interesse de trabalho centrado em torno da pesquisa em psicanálise: uma pesquisa que Freud nomeou desde sempre como sendo indissociável do próprio tratamento psicanalítico e que deve fazer com que se aborde cada caso em sua singularidade, esquecendo-se quase que completamente da teoria psicanalítica. Em segundo lugar, está-se animado pela ideia de retomar as articulações da psicanálise com outras ciências. Com efeito, aquilo que alguns talvez pudessem considerar uma grande presunção constitui, para nós, na verdade, apenas uma exigência mínima para se começar um trabalho realmente frutuoso. Veremos isso mais à frente. Por último, está-se animado por um ideal de simplicidade, precisão e clareza que, longe de se opor a determinadas ambições que são as nossas, parece-nos ser a única maneira legítima de viabilizá-las. Também voltaremos a isso.
Numa carta a James Putnam (11/03/1913), Freud atribuía a maior dificuldade de se realizar a unidade no seio do movimento psicanalítico do que em outros domínios à maneira pela qual “o elemento pessoal nele representa papel importante”. Freud se referia aí, sem dúvida, ao aspecto transferencial que está em jogo no próprio núcleo da prática psicanalítica e que implica no desencadeamento de afetos que muitas vezes respondem pelas comoções que abalam o movimento psicanalítico. Por outro lado, numa carta a Georg Groddeck (21/12/1924), Freud manifesta seu apoio à existência da instituição psicanalítica nos seguintes termos: “É difícil praticar a psicanálise de forma isolada. Ela constitui uma empresa eminentemente social”. Freud acrescenta de modo irônico que “seria tão melhor se enrubescêssemos ou vociferássemos em coro e cadenciadamente, em vez de grunhir cada um por si, em seu canto”. Assim, para Freud, a dificuldade de unificação dos analistas não deve funcionar como fator de desistência da motivação institucional.
Em minha opinião, a pluralidade de instituições e escolas psicanalíticas deve-se a outro fator, interno ao próprio campo teórico e independente das convulsões emocionais dos sujeitos: o fato de que, sendo uma ciência de apenas cem anos, a psicanálise ainda não produziu um número de paradigmas suficiente para que venha a constituir um eixo central de articulações em torno do qual a ciência psicanalítica progrida. Se Freud jamais questionou a cientificidade da psicanálise, Lacan, por sua vez, problematizou-a inúmeras vezes.
Em Televisão, texto que trata de forma significativa do corpo e da ciência, à questão “o que se pode vir a saber?”, Lacan afirma que o saber, para a psicanálise, é desde sempre suposto pelo sujeito do inconsciente. A resposta que Lacan fornece a essa questão é então: “Nada que não tenha em todo caso a estrutura da linguagem, de onde resulta que até onde irei neste limite, é uma questão de lógica”. Lacan acrescenta que tais limites podem ser muitíssimo amplos, como se vê “pelo fato de o discurso científico conseguir a alunissagem, em que se atesta para o pensamento a irrupção de um real. Isto sem que a matemática tenha outro aparelho senão o de linguagem”. Assim, para Lacan, o a priori constituído pela linguagem é um limite radical, mas que ainda assim não deve nos inibir de pensar a respeito do que é o “real-da-estrutura”. Pois, afinal, se o inconsciente é estruturado como uma linguagem resta sempre a pergunta: mas qual é, então, a estrutura da linguagem? Por outro lado, se Lacan afirma que o “sujeito do inconsciente influi no corpo”, também fica a indagação: mas o que o corpo terá influído no advento do inconsciente?
Cito, a esse propósito, uma carta de Freud a Groddeck, na qual ele afirma que a natureza apresenta uma “infinita variedade que se alça do inanimado ao organicamente animado, da vida somática à vida psíquica. O inconsciente é certamente o verdadeiro intermediário entre o somático e o psíquico, talvez seja ele o missing link tão procurado” (carta de 05/06/1917). É tal questão que venho elaborando dentro de uma perspectiva que é a de tentar introduzir parâmetros com elevado poder de cientificidade para a teoria psicanalítica. Nesse sentido, desenvolvo um trabalho de pesquisa que visa associar os achados da psicanálise sobre as relações entre o inconsciente e a linguagem aos diversos desenvolvimentos da teoria da evolução.
Todas as produções humanas de linguagem se inscrevem numa região de ocorrência de sentido, precisamente na interseção situada por Lacan entre o simbólico e o imaginário. O sentido pode ser um sentido dado, fechado ou um sentido por vir, novo, aberto. Como já indiquei num trabalho anterior, psicanálise e religião se opõem de modo absoluto, desde que a psicanálise surgiu, na medida em que ambas representam modos discursivos inteiramente antinômicos de lidar com o sentido. Se a psicanálise reconhece em sua prática o sentido dado, fechado, do discurso neurótico, como uma maneira de poder subvertê-lo e reabrir o processo de produção de significação ao qual o sujeito estava preso, a religião é a grande conservadora do sentido dado, fechado, inquestionado.
Se tomarmos a experiência psicanalítica em sua prática clínica, vemos que a interpretação psicanalítica procede ao desvelamento do sentido inconsciente dos sintomas. O sintoma vigora enquanto o sujeito desconhece o seu sentido oculto e, portanto, o sintoma vigora no próprio lugar do sujeito, elidindo-o – sendo a tarefa da psicanálise precisamente a de reincluir o sujeito partido entre os significantes na estrutura discursiva e, logo, avesso à dominação de qualquer significação última.
Ou seja, a psicanálise negativiza o sentido fechado, o que permite a emergência do sentido novo. Por isso, a psicanálise é um discurso que não elide o real em sua estrutura e a transferência, enquanto mola propulsora do tratamento analítico, invoca um amor necessariamente não correspondido, um amor sem a ilusão de completude e reciprocidade própria à relação amorosa da vida cotidiana; em suma, na análise trata-se de um amor no qual a falta é introduzida.
Se, por um lado, a prática psicanalítica é de alguma maneira a produção da evacuação, da negativação do sentido, tal como este se acha imposto na neurose, por outro, a teorização dos psicanalistas é algo que deve necessariamente participar do processo de positivação do sentido. Tal processo pode ter, a meu ver, duas vias diferentes e bastante opostas de escoamento, na dependência de que o discurso que produz o sentido tenha ou não referente indicado pela experiência clínica.
Sabe-se que o sentido positivado é da ordem da ciência, quando o referente a que se dirige o discurso se acha presente. O sentido positivado é da ordem da religião quando o referente a que se dirige o discurso se encontra ausente.
Assim, a presença, a positividade do referente da clínica é aquilo que permite à teorização psicanalítica produzir sentido no âmbito científico e, na ausência desse referente, a produção teórica recai como que automaticamente no âmbito do discurso religioso. Exemplo disso é a referência constante de Freud às questões colocadas pela escuta de seus analisandos desde os primórdios de sua experiência: quando falo de presença do referente da clínica psicanalítica, estou pensando na fala do analisando e sua escuta. Pois é nessa medida, amplamente ressaltada por Lacan, que a experiência clínica é ainda e sempre a grande referência do discurso psicanalítico.
Quanto à fé, esta não é outra coisa senão o sentimento que permite que se prescinda do referente para se acreditar em algo. Já o ceticismo do cientista – e era por esse motivo que Freud considerava o caminho da ciência como o mais penoso dos caminhos possíveis da criação humana –, por sua vez, não prescinde da presença indicada do referente do discurso.
Assim, pode-se observar que há precisamente dois polos antinômicos de produção de sentido, o científico e o religioso, que permitem que se entendam determinados problemas inerentes à teorização psicanalítica. Quando falta ciência na produção de sentido das teorizações psicanalíticas, a tendência é que esta produção de sentido recaia na religião. Trata-se, aqui, de uma estrutura discursiva, pois se sabe que a religião é um discurso que se opõe frontalmente ao discurso psicanalítico – veja-se, a esse respeito, o texto de Freud sobre O futuro de uma ilusão.
Mas é igualmente importante notar que a religiosidade ameaça a instituição psicanalítica em seu próprio interior. Sem mencionarmos qualquer autor em particular – pois, como diz Ezra Pound, “o mau crítico se identifica facilmente quando começa por discutir o poeta e não o poema” – é preciso observar que há com alguma frequência um tom predominantemente religioso nas produções psicanalíticas; textos cuja linguagem hermética impede, às vezes, que se entenda até mesmo a que aquele discurso se refere.
Entre as diversas escolas psicanalíticas, a luta instaurada pelas diferentes teorizações acarreta uma verdadeira guerra religiosa, cada qual pretendendo impor o sentido verdadeiro. Quando há necessidade de se impor o sentido de uma teorização qualquer é porque esta não possui um referente designado que garanta alguma condição mínima de cientificidade e só resta aos adeptos daquela doutrina se transformarem em seguidores acéfalos, verdadeiros fiéis que prescindem do sentido referenciado. O obscurantismo das produções passa assim a ser a tônica dominante, pois se falta ciência, a religião se apodera dos discursos. Nesse mesmo sentido, Freud apreciava os versos de Goethe: “Aquele que tem ciência e arte, tem também religião; o que não tem nenhuma delas, que tenha religião!”