Homenagem Núcleo São Paulo

CONTARDO LUIGI CALLIGARIS 

(Milão, 02.06.1948 – São Paulo, 30.03.2021) Ele surgiu, viveu, deixou sua marca entre nós.  

Surgiu. Calligaris é o nome de uma família da Lombardia, região do norte da  Itália, cujo primeiro registro remonta ao século XIII. Contardo nasceu nessa  família, na cidade de Milano, no ano de 1948, enquanto ainda estavam muito presentes, no cotidiano e na vida, os efeitos da guerra finalizada há apenas três  anos. Ele foi o segundo filho nascido de um casal de ativos anti-fascistas e  amantes das artes; seu pai exercia a medicina. Ao lado da sua família, ele viajou  muito, visitou museus, aprendeu muitas línguas. Libertário e habitado por um  espírito no qual o nomadismo e o sedentarismo disputavam em que momento um  ou outro tomaria a frente da cena, Contardo teve vários casamentos e viveu – às  vezes simultânea, outras, sucessivamente – em muitos países. Porém, nos  últimos 47 anos, ele se dedicou à arte diária do exercício da psicanálise – atividade  que também se desdobrou nos ofícios de professor, escritor, dramaturgo,  colunista e crítico da cultura – e nos últimos 37, ele fixou residência no Brasil – ainda que por onze anos, de 1994 a 2004 – essa residência brasileira fosse  partilhada com outra, nos Estados Unidos, país no qual ele já vivera antes. 

Viveu. No limiar da vida adulta, o jovem Contardo se dirige à Université de  Genève, na Romandie – a parte francófona da Suíça – e lá ele irá se graduar  simultaneamente em Filosofia – com concentração em Epistemologia e Teoria do Conhecimento –, onde ainda participa das últimas atividades docentes do  fundador da epistemologia genética, Jean Piaget, e em Letras – com concentração  em Crítica e Teoria Literária –, onde foi aluno de George Steiner. Como  consequência de sua formação em Letras, ele é, ao se formar, convidado a se  tornar professor de Teoria da Literatura da Université de Genève. Com o salário  de professor e com a sua atividade docente concentrada em alguns dias da  semana, ele passa a dividir seus dias entre Genève e Paris. Em Paris, ele faz, sob  a orientação de Roland Barthes, seu doutorado em Semiologia (o primeiro deles),  sua tese, sob o título Italo Calvino, será em 1973 lançada como livro pela Ugo  Mursia Editore, de Milano. A este livro, seguirá em 1975, pela Dédalo, de Bari, um  outro, também no campo da semiologia barthesiana, Il cuadro e la cornice.  Coubert, Manet, Degas, Magritte, Duchamp. Per uma crítica de la  representazione. No período de seus estudos em semiologia, Contardo, que já  conhecia a obra de Freud e iniciara sua análise com Serge Leclaire, passa a se  interessar pelo trabalho de Jacques Lacan. Em 1975 ele deixe Genève por Paris e  se torna membro da École Freudienne de Paris. Nesse dia ele tem uma conversa  com Lacan sobre o que ele haveria de fazer como membro; Lacan lhe diz: “Vá e se  faça conhecer no mundo”. Em 1981 nasce o seu filho, Maximilien Calligaris (Max)  que se tornará cineasta. Em 1982 ele estará entre os co-fundadores, sob a  liderança de Charles Melman, da Association Freudienne. Em 1983, é publicado  o seu Hipothèse sur le fantasme pela Édition du Seuil (Paris, 1983). Esse livro de  Contardo é enviado por Charles Melman a um grupo de jovens psicanalistas  paulistas a ele ligado. Em 1985, o jovem Contardo Calligaris vem a Porto Alegre para um intenso evento de três dias acompanhando três psicanalistas veteranos  da antiga École de Lacan e fundadores da Association Freudienne, Jean Bergès,  Marcel Czermak e Charles Melman. Os cinco paulistas que leram o livro de 1983  estavam ali presentes. Os trabalhos que nesses dias foram lá apresentados por  Contardo se inseriam na nova linha de pesquisa que ele inaugurara logo após a 

escritura de seu livro anterior e que se prolongará até a defesa de seu segundo  doutorado, a ocorrer bem mais tarde, em 1993 e que diz respeito a uma  abordagem da perversão segundo a qual ela seria, antes de tudo, uma patologia  do social que se expressaria como uma patologia sexual apenas secundariamente.  Deixou sua marca entre nós. Em 1986, o já mencionado livro de Contardo terá, pelas Artes Médicas, de Porto Alegre, a sua edição brasileira (Hipótese sobre  o fantasma). Desde de então Contardo passa a ser um frequentador assíduo do  Brasil, visitando inúmeras cidades brasileiras. Aos poucos ele se verá estabelecido  em Porto Alegre e passando a cada período de dois meses, uma temporada de  quinze dias em São Paulo. Em Porto Alegre ele trabalhará para o surgimento do  que viria a se tornar, em 1989, a APPOA, da qual ele foi um dos fundadores e o  seu primeiro presidente. Lá, nesse mesmo ano é lançado o seu Introdução a uma  clínica diferencial das psicoses (Artes Médicas), que sairá em 1991 na França  como Pour une clinique différentielle de las psychoses (Érès, Paris). Em São  Paulo ele será o psicanalista de fora que regularmente passa nessa cidade um  período suficientemente bom para se tornar o analista dos que não estavam à  vontade para se analisarem com os analistas da cidade, o analista das eventuais  segundas análises dos analistas paulistas, o supervisor dos analistas em  formação. E animará por uma década, mensalmente, o seu seminário. Interrompendo seu cotidiano no Brasil, fechando o que deixou aberto e se  preparando para uma posterior virada, Contardo, em 16 de outubro de 1993 defenderá com o título de La passion de l’instrumentalité – Recherche sur la  perversion comme pathologie sociale, o seu segundo doutorado, desta vez em  Psicologia Clínica, no Centre de Recherche en Psychopathologie Clinique da  Université de Provence Aix-Marseille I, sob a direção de Roland Gori e diante de  Fedida, Gutton, Pedinelli e Sztulman, no juri. No ano seguinte, 1994, e até 2004,  Contardo circulará entre os Estados Unidos e o Brasil, ou seja, como professor,  entre Berkeley e New York – ensinando na University of California, Antropologia e na The New School for Social Research, Estudos Culturais – enquanto  continuará exercendo a clínica psicanalítica entre São Paulo e Porto Alegre,  dando início também a uma atividade clínica em New York e, em seguida,  também em Boston. A partir de então, ao lado de seus textos teóricos, vem a luz  também uma produção ficcional. Em 1999 ele dá início a sua atividade semanal  de colunista na Ilustrada da Folha de S. Paulo e, a partir de 2014, dá início,  através de séries televisivas da HBO, a sua atividade como dramaturgo. Quanto  aos seus conhecidíssimos livros publicados neste país ao longo destas décadas,  dispensam apresentações. Manteremos apenas a nomeação dos anteriores, os  demais – aliás, excelentes – já são por demais conhecidos. 

Sua marca fez a diferença. A psicanálise entre nós, a após ter acontecido aqui,  junto à opinião pública, a palavra de alguém como Contardo, é já uma psicanálise  renovada, transformada, virada do avesso, se pensada em relação àquela outra  que por pouco teria se imposto. Contardo esteve entre nós por trinta e sete anos,  ou seja, mais da metade de sua vida foi vivida neste país. Deixou-nos quando muito ainda teria a nos dizer com seu fino humor e com a sua habilidade de nos  trazer o inesperado 

Ciao, Contardo! Grazie mille. 

por Rodolpho Ruffino,
uma homenagem do
Núcleo São Paulo do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise
à memória de Contardo Calligaris.

Data

abr 05 2021
Expired!
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