Núcleo Brasília

Fundado em agosto de 2020, o Núcleo Brasília surgiu em pleno isolamento social imposto pela invasão do Real nesses tempos de pandemia do Covid 19, como a 20° escola/núcleo do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise. Esse projeto é o resultado de um sonho acalentado nos últimos 10 anos pela fundadora Maria Ormy Moraes Madeira.  Inicialmente como associada da Escola no Rio de Janeiro onde fez formação básica e, posteriormente, formação permanente, quando teve oportunidade de participar de inúmeros seminários e de manter viva interlocução com professores e colegas, levando-a ao mestrado e ao doutorado em andamento. Na academia como aluna e no Corpo Escola como associada e analista, parte desse Corpo, desejou levá-lo se um dia tivesse que deixar o Rio de Janeiro. A psicanálise motivou o desejo de transmissão e a transferência de trabalho uniu amigas de longa data. Agora aqui estamos! O desejo tomou corpo!

A proposta do Núcleo de Brasília é manter os princípios estruturais do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro e fazer pontes com todos os outros Núcleos e Seções da Escola com a intenção de ampliar o trabalho de transmissão. Não por acaso escolhemos uma ponte como logomarca do nosso Núcleo. Ponte que nos ligará a vários campos de interlocução como as artes; a medicina; a educação; a biologia; a história; ao direito; a filosofia, dentre outros.

FORMAÇÃO BÁSICA

Nosso compromisso é transmitir, no Curso de Formação Básica, um conjunto conceitual fundamental da Teoria Freudiana e do Ensino de Jacques Lacan. A formação básica do analista não tem um fim em si mesma, isto é, não é uma formação acabada, mas um trabalho contínuo que perpassa por questões teóricas, clínicas e análise pessoal. Deve ser uma introdução ao público que visa uma aproximação teórica com a psicanálise e àqueles que desejam uma formação propriamente psicanalítica, portanto permanente.

FORMAÇÃO PERMANENTE

Contando com os efeitos da formação em psicanálise, que irão exigir contínua renovação do psicanalista, a formação permanente envolve um percurso de atividades como cartéis, atividades clínicas, seminários, encontros, conferências, grupos de estudos, grupos de trabalho, estimulando a reflexão necessária à causa analítica. O intuito é promover, por meio dessas atividades, a interlocução entre pares e a circulação das experiências interdisciplinares. Tendo em mente que um dos paradoxos da psicanálise é ser ela a ciência do singular, que não permite generalizações, consideramos imprescindível o exercício da singularidade do candidato a analista, respeitando sua autonomia e necessidades para adequá-la à sua futura práxis. Desse modo, a análise pessoal, que é essencialmente didática, a supervisão clínica recomendada como um dispositivo mais livre e as questões teóricas serão adequadas a tais particularidades, regidas pela ética do desejo e afastando-se do aprendizado orientado pela mestria e por dogmas.

Atividades coordenadas pela psicanalista Maria Ormy Moraes Madeira:

Mais informações pelo e-mail corpofreudianobrasilia@gmail.com
ou pelo nosso Instagram @corpofreudianobrasilia

Discurso de fundação do Núcleo de Brasília do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise

Maria Ormy Moraes Madeira

Imagino estar havendo um estranhamento pela escolha do tema do canto fúnebre com que Numa Ciro lindamente acaba de nos contemplar. O porquê do pranto no canto na noite de fundação do Núcleo de Brasília? 

Não deveríamos ter escolhido, para esta noite, exprimir a alegria pelo nascimento do Corpo em Brasília?

Quando publicamos o convite nas redes sociais anunciamos “Diálogos sobre o Corpo”. O fato de os convidarmos a falar do corpo já começa a indicar o propósito do pranto do canto, pois a dor é uma das formas de o corpo falar. Também, não há como falar do corpo sem falar de vida e morte.

Corpo, dor, vida e morte: quatro significantes que nos remetem à invasão que o real nos acomete nesses tempos de pandemia. Um “pedacinho do real”, como nomeado pela psicanalista Stella Jimenez, vítima recente do Covid 19, esse que mudou nossas vidas e nossas mortes. O isolamento social impôs às vidas clausura e, às mortes, solidão. Mortes sem a assistência das pessoas amadas, sem velórios, sem rituais simbólicos que oferecem àquele, mesmo que morto, sua história perpetuada nas letras de seu nome inscritas na lápide: vida após à morte.

Na psicanálise não recuamos diante do real, sabemo-lo impossível como um furo no imaginário e como falta no simbólico. Isso talvez explique o porquê de iniciarmos essa noite de fundação homenageando tantas vidas ceifadas nessa invasão do real.

Embora o corpo não tenha um estatuto conceitual em Freud, do ponto de vista da psicanálise, o corpo freudiano é considerado sob diversos ângulos, mas preponderantemente na articulação com o inconsciente. Sob o ponto de vista de Lacan trata-se da articulação entre corpo e linguagem, uma vez que concebe o inconsciente estruturado como linguagem. Porém, o corpo na psicanálise vai sempre aparecer com uma certa ambiguidade em torno de ser ou de ter. Como Freud elaborou, o Eu é análogo ao corpo, corpo próprio. Deduzimos então, como um corpo para chamar de nosso.  

Desde o início de seus estudos Freud reconhece a relevância das primeiras experiências de satisfação do bebê.  Trata-se de um corpo que nasce muito prematuro e na dependência de cuidados de seus semelhantes. Esse fator produz as primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser amado de que o homem não mais será libertado. Esse aspecto é extremamente relevante pois o animal da espécie humana não depende apenas das necessidades fisiológicas, mas muito além disso, precisa do outro semelhante  que lhe tire da condição biológica de desamparo e lhe proporcione, na dialética eu-outro, “conjugar” o verbo amar que se desdobrará na “fonte intrínseca de todos os motivos morais.” (FREUD, 1895 [1992], p. 363). 

A psicanálise não se esquece jamais que o psíquico repousa sobre o orgânico, sendo o conceito de pulsão, apoiado nesse princípio, como “uma medida de exigência imposta ao psíquico em consequência de sua relação com o corpo. Porém, é o corpo erógeno que prepondera ao organismo, a ponto de Lacan dizer que a psicanálise é a ciência das eróticas do corpo, sendo essa, segundo ele, a melhor definição da função da psicanálise. 

É pela imagem dos lábios que beijam a si mesmos que o corpo-narcísico do bebê se toma como objeto de amor. O bebê, ao fantasiar sua satisfação sugando sua própria boca, evoca esse círculo que implicará na abertura do corpo na sua própria aptidão para a erotização e já aponta para a fundação de uma realidade que perdurará ficcional.

É o que Freud vai elaborar sobre o narcisismo (1914) como uma fase necessária que estrutura as relações do homem com o mundo. O corpo, na medida em que é uma forma, desempenha um papel primordial nesse processo, como nos mostra o Estádio do espelho de Lacan (1949): “É a imagem de seu corpo que constitui a unidade que o Eu percebe nos objetos.”

Podemos dizer com Freud e Lacan que, para se fazer um corpo, é necessário um organismo, uma imagem e um dito: “tu és aquele que vês”.  É nesse processo do estádio do espelho que o Eu se constitui no engodo das identificações. É como a “superposição dos diferentes mantos tomados da coleção dos vários objetos investidos libidinalmente ao longo de sua história. 

O importante é que esse Eu-corpo seja tomado pelo desejo dos pais e investido de suas fantasias, contudo, é preciso uma nova ação psíquica para sair do lugar de objeto amado e investir em outro lugar. Entre castrações, frustrações e privações o gozo no corpo sofrerá suas consequências tornando-se gozo apenas parcial, limitado pela cadeia de significantes que divide o corpo em zonas erógenas. Regido pelo princípio do prazer, esse corpo vai gozar apenas nos buracos e bordas por meio dos objetos da pulsão que Lacan nomeou: seio, fezes, olhar e voz, objetos condensadores de gozo. Mas esse processo também não será sem consequências. É o que se desvela na clínica da inibição, sintoma e angústia.

Contudo, há também um mais além do gozo limitado pelo princípio de prazer entre “O Eu e o Isso” (1923). Embora, o nosso Eu seja sobretudo um eu corporal derivado das sensações, basicamente daquelas que afloram da superfície do corpo, ele não é apenas um ente de superfície: é também, ele mesmo, a projeção de uma superfície. Ele se comporta durante nossa vida de forma essencialmente passiva. Avassalado entre o Supereu e o Isso somos vividos por forças desconhecidas e incontroláveis, como afirmou Georg Groddeck, considerado o pai da psicossomática. Freud concordou: “de fato, todos nós já tivemos a impressão de sermos vividos por tais forças.” (Freud, [1923] 2007, p. 37)

Nossa superfície corporal é investida de um valor atribuído por nossos provedores de cuidados que os sonhos e sintomas testemunham colocando em cena a anatomia fantasística do corpo erógeno. Não sem razão a pele é esse órgão tão afetado pelas manifestações psicossomáticas. As afecções na pele podem ser uma maneira de se manter ligado a traços de memória inscritos no corpo nesse estágio da vida. É nessa superfície que é depositado o amor, a atenção, a repugnância, a agressão, num processo que fundamenta a relação com nossa imagem corporal, com as imagens externas e com o outro. São identificações que podem modificar a própria matéria do corpo. 

Em suma, podemos dizer que sob o viés psicanalítico o corpo, como lugar de passagem do objeto e da linguagem, é aquele que reverbera ecos. Sendo a linguagem, ao mesmo tempo limite ao gozo, é ela mesma causa de gozo. Essa constatação leva Lacan a concluir: assim como há um gozo que se enlaça à vida, há um sem limite, um Outro gozo que corteja a morte. E o corpo é o lugar privilegiado para o intricamento e desintricamento de vida e morte, da pulsão e do desejo. 

E falando em desejo, fundamos hoje o Núcleo de Brasília do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise, projeto que esteve em gestação em mim ao longo dos últimos 10 anos.  Primeiro como associada da Escola no Rio de Janeiro onde fiz minha formação básica e posteriormente, na formação permanente quando tive oportunidade de participar de inúmeros seminários e de manter viva interlocução com professores e colegas, o que me levou ao mestrado e agora ao doutorado, sempre pesquisando o corpo afetado pela linguagem. Na academia como aluna e no Corpo Escola como associada e analista, como parte desse Corpo, desejei levá-lo comigo se um dia tivesse que deixar o Rio de Janeiro. Aqui estamos, o desejo tomou corpo!

 

REFERÊNCIAS

 

FREUD, S.  (1895). Proyeto de Psicología. In: Obras completas, v. 1. Buenos Aires: Amorrortu, 1992, p. 25-40.

 

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______. (1915 c). Pulsões e Destino da Pulsão. In: Escritos sobre a psicologia do inconsciente, v.1. Rio de janeiro: Imago, 2004, p. 133-174.

 

______. (1915e) O Inconsciente. In: Obras Completas, v. 2, Introdução ao Narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1915) / Sigmund Freud. São Paulo: Companhia das letras, 2010, p. 13-74.

 

______. (1920). Além do Princípio de prazer. In: Escritos sobre a psicologia do inconsciente, v. 2. Rio de Janeiro: Imago, 2006, p. 123-198.

 

______.  (1923b). O Eu e o Id. In: Escritos sobre a psicologia do inconsciente, v. 3. Rio de Janeiro: Imago, 2007, p. 13-92.

 

______. (1924b). O Problema Econômico do Masoquismo. In: Escritos sobre a 

psicologia do inconsciente, v. 3. Rio de janeiro: Imago, 2007, p. 103-124.

 

GRODDECK, G. W. (1917-1933). Escritos Psicanalíticos sobre literatura e arte. São Paulo: Perspectiva, 2001.

 

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______. (1917-1933). Estudos psicanalíticos sobre psicossomática. São Paulo: Perspectiva, 2011.

 

LACAN, J. (1949). O estádio do espelho como formador da função do eu. In: ______.Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 96-103.

 

______. (1953). Função e campo da fala e da linguagem. In: ______.Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 238-324.

 

______. (1970). Radiofonia. In: ______. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 400-447.

 

______. (1972-1973). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

JIMENEZ, S. A vingança do real. Publicado por Jornal GGN In: Artigos. 28 de abr. de 2020.

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