Convergencia

O MOVIMENTO DE CONVERGENCIA E O FUTURO DA PSICANÁLISE

Marco Antonio Coutinho Jorge1

O Movimento de Convergencia, fundado em Barcelona em 1998 por quarenta e cinco associações de psicanálise de todo o mundo, já tem, hoje, uma história. Assim, seu primeiro Congresso foi realizado entre 2 a 4 de fevereiro de 2001 na Unesco e o segundo será sediado no Rio de Janeiro em maio de 2004.
Retomemos essa história, pois, como sabemos a partir da experiência da psicanálise, isso significa abrir as possibilidades para o futuro. Convergencia se inscreveu como movimento psicanalítico no rastro da dissolução da Escola Freudiana de Paris, efetuada por Jacques Lacan em 1980, um ano antes de morrer. Tal dissolução produziu uma dispersão na comunidade analítica lacaniana, composta por “quase todos”2 os psicanalistas das gerações anteriores, que não se filiaram à Escola da Causa Freudiana, liderada pelo genro de Lacan.
Convergencia tomou para si a tarefa de restabelecer o vínculo entre esses analistas, o qual se tornara tênue ou até mesmo inexistente devido à enorme fragmentação do movimento lacaniano ocorrida depois da morte de Lacan. Por outro lado, é preciso dizer que Convergencia teve sua origem na América do Sul, sendo um prolongamento do Lacano-Americano, movimento sul-americano que se reuniu pela primeira vez em Punta Del Este, no Uruguai, em 1987, com um dispositivo de funcionamento próprio. Além disso, Convergencia é igualmente um prolongamento do Inter-associatif de Psychanalyse, cujo primeiro colóquio ocorreu em janeiro de 1991 e cuja fundação oficial ocorreu em 1994 em Bruxelas.
Como o próprio título dessa mesa ressalta,3 Convergencia é um movimento e não uma supra-instituição. Tal característica é absolutamente essencial e revela que se trata aqui de sustentar, antes de tudo, a diferença de cada grupo, de cada instituição psicanalítica, considerados como soberanos, com sua história, seu percurso e sua singularidade.
Em contrapartida, trata-se igualmente de incentivar as trocas pontuais, advindas da transferência de trabalho, em encontros múltiplos que podem se dar em diversas regiões: locais,regionais, internacionais. Sabemos que é o trabalho que suscita a transferência de trabalho.
1 Psicanalista, Diretor do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro, Professor-adjunto do Instituto de Psicologia da UERJ.
2 Remeto o leitor ao texto de Jean Szpirko, Convergência – Movimento Lacaniano para a Psicanálise Freudiana, publicado in Documentos, ano 6, número 14, Rio de Janeiro, Corpo Freudiano do Rio de Janeiro, junho de 2000, pp.7-21, do qual extraímos a maior parte das informações históricas aqui contidas.
3 Esse trabalho foi apresentado na mesa redonda sobre o movimento de Convergencia realizada no Simpósio do Rio de Janeiro da Intersecção Psicanalítica do Brasil, em 18 de outubro de 2003.

Trata-se ainda em Convergencia de uma dimensão essencial que diz respeito à política internacional da psicanálise, permitindo ao movimento apoiar cada uma das associações participantes em momentos de conflito político com as instituições de saúde ou de ensino locais.
A propósito dessa dimensão concernente à política internacional da psicanálise, ocorreu-me relatar algumas informações obtidas nas trocas efetuadas num cartel sobre a formação do analista, do qual eu e Denise Maurano participamos enquanto membros do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro -, juntamente com psicanalistas da França, da Argentina, da Itália e dos EUA, no quadro de atividades da Convergencia.
Em primeiro lugar, a situação da psicanálise na Itália, hoje, é extremamente problemática, segundo o depoimento dos psicanalistas italianos com quem trabalhamos, Sergio Contardi, de Milão, e Gabriella Ripa di Meana, de Roma. Pois há bastante tempo, para ser mais preciso há exatos onze anos, vigora uma lei na Itália que obriga os psicanalistas, para exercerem sua atividade, a serem membros de uma instituição psicanalítica que se inscreva no rol das instituições psicanalíticas aprovadas pelo estado para oferecerem sua formação. E o que o estado exige dessas instituições é que elas tenham uma inscrição formal enquanto sociedades de psicoterapia. A única instituição que não se inscreveu nesse rol se chama Noddi Freudiani, da qual participam os colegas mencionados, duplamente sediada em Milão e Roma, e que se recusa a inscrever a prática da psicanálise no âmbito da psicoterapia. Evidentemente que a sustentação dessa posição compatível com a ética psicanalítica produz conseqüências graves para os membros de Noddi Freudiani, uma vez que sua prática – clínica, de formação e de transmissão -, se dá de forma inteiramente marginal, segundo a lei estatal.
Já nos Estados Unidos, algo diferente vem ocorrendo, algo que remete à questão da formação do analista. O que surpreende é que nesse país, conforma nos relatou Paola Mieli, psicanalista que dirige a Après-Coup Psychoanalytic Association em Nova Iorque, foi criado um organismo intitulado Psychoanalytic Consortium, composto de quatro organizações-membro, a American Academy of Psychoanalysis, a American Psychoanalytic Association, o National Membership Committee on Psychoanalysis in Clinical Social Work e a Division of Psychoanalysis.
Trata-se de um consórcio formado por quatro grandes associações norte-americanas, que se reuniram em 1999 com o objetivo de estabelecer um protocolo que definisse os elementos em jogo na formação de um analista. Esse Consortium acabou de ratificar, em maio de 2001, o que eles denominam de os “Standards of Psychoanalytic Education”, ou seja, os padrões da formação do psicanalista. Paola Mieli escreveu um texto no qual faz uma crítica do protocolo sustentado pelo consórcio e o enviou para essas sociedades.4
4 A tradução desse texto, intitulado Questions raised by the Report of the Psychoanalytic Consortium on Analytical Training, será publicada em breve na coletânea que estou organizando, intitulada Lacan e a formação do psicanalista (Rio de Janeiro, Rios Ambiciosos, 2004).Como Mieli sublinha, esses standards surpreendem, de fato, porque apresentam inúmeros pontos que nós consideramos como absolutamente anti-psicanalíticos. Por exemplo, a definição dada pelo Consortium sobre o que é a psicanálise é a seguinte: “Psicanálise é uma forma específica de psicoterapia individual que objetiva trazer à consciência os elementos e processos mentais inconscientes com o objetivo de expandir o self individual, a auto-compreensão,produzindo adaptação em múltiplas esferas de funcionamento, aliviando sintomas de distúrbios mentais e facilitando mudanças de caráter e crescimento emocional”. Além dessa definição que não é necessário comentar mais longamente – uma vez que emprega termos (psicoterapia, adaptação, distúrbios mentais, crescimento emocional etc) que são passíveis de serem objeto de uma crítica severa de nossa parte -, o Consortium estabelece padrões sobre a formação que revelam um desconhecimento profundo da complexidade em jogo na formação de um analista, aquilo que Lacan chamou, na Proposição de 9 de outubro de 1967, de “um real em jogo na formação do psicanalista”.      O protocolo do Consortium estabelece, por exemplo, a freqüência de pelo menos três sessões por semana como uma garantia de “profundidade” e de “intensidade” da formação psicanalítica, como se a simples freqüência de sessões fosse suficiente para obter o efeito de formação almejado.
Outro exemplo que revela os impasses a que leva o documento elaborado pelo Consortium: nele, é dada uma primazia enorme à seleção dos candidatos que querem fazer formação, no sentido de avaliar, antecipadamente, as condições do candidato para ser psicanalista. Vemos que os parâmetros, aqui, chegam a ser bastante curiosos, pois eles supõem uma normalidade prévia à análise que é considerada como condição necessária para alguém se tornar analista. Na verdade, eles constituem uma aposta contra a própria psicanálise, pois formulam, implicitamente, que a análise não irá produzir grandes mudanças no sujeito. Nós, que trabalhamos na referência ao ensino de Freud e de Lacan, sabemos o quanto isso nada tem a ver com a experiência analítica, pois sabemos o quanto, muitas vezes, as análises de sujeitos extremamente conflituados são análises que vão muito fundo e produzem analistas dignos desse nome.
A função de Convergencia é, portanto, a de promover a troca de informações entre analistas de diferentes regiões e de incentivar os laços discursivos necessários para o aprimoramento e o crescimento da psicanálise no mundo. É disso que depende seu futuro e é nisso que Convergencia faz sua aposta.